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![]() 1º Artigo - Conceito e função do Mito
Para Junito Brandão, o mito é o relato de um acontecimento ocorrido no tempo primordial, mediante a intervenção de entes sobrenaturais. Mircea Eliade define o mito como o relato de uma história verdadeira, ocorrida nos tempos primordiais, sob a interferência de entes sobrenaturais, onde uma realidade passou a existir, seja essa realidade total ou parcial. Portanto, o mito traz sempre a narrativa de uma criação, a partir da qual algo que não existia passou a existir. Representa, portanto, sempre algo coletivo, que, transmitido através das gerações, traz uma explicação do mundo. Desse modo, mito passa a ser a palavra revelada, o dito e, sendo assim expresso através da linguagem, ele é, antes de tudo, uma palavra que circunscreve e fixa um evento "real", mas não "histórico". Segundo Joseph Campbell, não seria demais considerar o mito como a abertura secreta, através da qual as inexaríveis energias do cosmo penetram nas manifestações culturais humanas, onde as formas de expressão e pensamento do homem surgem do cícurlo básico e mágico do mito. Junito Brandão nos fala ainda que o "mito expressa o mundo e a realidade humana, cuja essência é efetivamente uma representação coletiva, que chegou até nós através de várias gerações". E, na medida em que procura explicar o mundo e o homem (isto é, a complexidade do real), o mito não pode ser lógico. Ilógico e irracional, abre-se como uma janela a todos os ventos; presta-se a todas as interpretações. "Decifrar o mito é, pois, decifrar-se". Portanto, o mito deve ser considerado não enquanto objeto de uma mensagem, mas sim pelo modo como o profere Roland Barthes. Os mitos resultam da tendência incoercível do inconsciente para projetar as ocorrências internas, que se desdobram invisivelmente no íntimo, sobre os fenômenos do mundo exterior, traduzindo-as em imagens. O mito passa a ser uma verdade profunda inconsciente e coletiva de nossa mente, onde as histórias da humanidade estariam presentes, através da narrativa de encontros arquetípicos. Condesam, assim, experiências vividas repetidamente durante milênios, experiências típicas pelas quais passaram e ainda passam os humanos. Por isso, temas idênticos são encontrados nos lugares mais distantes e mais diversos, em sociedades com diferentes graus de evolução tecnológica. Para Paul Diel, citado por Eunice Brito, "cada uma das figuras mais significativas da mitologia grega representa uma função da psique e as relações entre elas exprimem a vida psíquica dos homens, divididas entre as tendências opostas que vão da sublimação à perversão: o espírito é chamado Zeus; a harmonia dos desejos, Apolo; a inspiração intuitiva, Palas Atena; o reflexo, Hades, etc. O elã evolutivo (o desejo essencial) encontra-se representado pelo herói e a situação de conflito da psique humana representada pelo combate contra os monstros da perversão. Todas as constelações, sublimes ou perversas do psiquismo são assim suscetíveis de encontrar sua formulação figurada e explicação simbolicamente verídica com o auxílio do simbolismo da vitória ou da derrota de tal ou qual herói em seu combate contra tal e tal monstro de significação determinada e determinável". O mito personifica o ideal de todo o ser humano; a conquista da própria individualidade, o acesso ao significado da vida. É uma instituição humana preciosa pelo seu caráter e significação no fornecimento de modelos à nossa cultura. Fundamenta e justifica um mundo real, no qual o homem se posiciona como um ser em toda sua finitude e, portanto, ligado à sua mortalidade, sexualidade e limitações. A função primária da mitologia e dos ritos, de acordo com Campbell, é a de fornecer os símbolos que levam o esperíto humano a avançar, opondo-se a outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás. Segundo Jung, os mitos seriam uma conscientização dos arquétipos do inconsciente coletivo (ou seja, uma ponte entre o consciente e o inconsciente coletivo), bem como uma forma de expressão pelo qual o inconsciente se manifesta.
Segundo o Dicionário Aurélio, o herói é definido como um homem extraordinário pelo seus feitos guerreiros, pelo seu valor, ou magnanimidade. Etimologicamente, héros talvez se pudesse aproximar do indo-europeu servã, da raiz ser, de que provém o avéstico haurvaiti "ele aguarda" e o latim serauãre, "conservar, defender guardar, velar sobre, ser útil", de onde se origina o significado de herói enquanto guardião defensor, o que nasceu para servir. Joseph Campbell define o herói como o homem da submissão conquistada, enquanto Carol S. Pearson observa que os heróis empreendem jornadas, enfrentam dragões e descobrem o tesouro de seus verdadeiros selves. Para Carl G. Jung, o herói é um ser quase sobre humano que simboliza as idéias, formas e forças que moldam ou dominam a alma. Segundo Nairo de Souza Vargas, o herói é aquele que se exaure na sua missão, vive para a sua causa. Nem deus nem humano, é intermediário entre o mundo da consciência e o inconsciente. Heróis são "daímones", são traços de união entre o mundo divino e o humano", - "hemitheóis", semi-deuses. Ser de transição? Traço de união? "Ponte"? Sissa e Detienne chegam a afirmar que "mesmo que o poeta queira sublinhar os traços comuns entre um deus e um mortal, face a face, um dado parece incontestável: afirmar a superioridade dos traços divinos oferece-lhe a oportunidade de reafirmar que homens e deuse são comparáveis". Seria o herói a imagem dessa comparação?
Existem várias teorias e interpretações quanto à origem e estrutura do herói. Vários autores afirmam que os heróis estariam ligados aos deuses do mundo subterrâneo, às divindades ctônicas, cuja origem está na existência de homens célebres, que, após a morte, desceriam ao Hades e ali habitariam em companhia dos deuses "de baixo". (O mito a partir de eventos históricos transformadores). Inúmeros autores, ao falar sobre a estrutura morfológica do herói, afirmam que o herói é uma personagem, cuja morte apresenta um relevo particular e que tem relações estreitas com o combate, com a agonística, a arte divinatória e a medicina com a iniciação da puberdade e os mistérios. O herói é fundador de cidades e seu culto possui um caráter cívico. Além do mais, é ancestral de grupos consagüíneos e representante prototípico de certas atividades humanas e primordiais. Todas essas características demonstram sua natureza "sobre-humana". Embora o herói possua uma descendência privilegiada e sobre-humana, (se bem que marcada pelo signo da ilegalidade), sua carreira, desde o início, é ameaçada por situações críticas. Assim, após alcançar o vértice do triunfo com a superação de provas extraordinárias, após núpcias e conquistas memoráveis, em razão mesmo de suas imperfeições congênitas e descomedimentos, o herói está condenado ao fracasso e a um fim trágico. Ultrapassa a justa medida e paga o preço de sua hybris (pretensão), mas é esta ultrapassagem do "métron" que promove as mudanças necessárias ao grupo. Com base em Mircea Eliade, poderíamos dizer que os heróis gregos compartilham uma modalidade existencial sui generis (sobre-humana, mas não divina) e atuam numa época primordial, precisamente aquela que acompanha a cosmogonia e o triunfo de Zeus. A sua atividade desenvolveu-se quando as estruturas não estavam definitivamente fixadas e as normas ainda não tinham sido suficientemente estabelecidas. O seu próprio modo de ser revela o caráter inacabado e contraditório do tempo das "origens". Transitórios e paradoxais, como crianças tão bem demonstram. Na Lenda Padrão do Herói, o mesmo costuma descender de ancestrais famosos ou pais nobres; em geral, é filho de um rei. Seu nascimento é precedido de muitas dificuldades. Durante a gravidez ou até em seguida à mesma, é profetizado o perigo que o recém-nascido representaria, no intuito de arriscar ou mesmo atentar contra a vida do pai ou seu representante. Assim, o recém-nascido encarnaria a ameaça ao poder constituído. Em função disso ele seria abandonado, colocado em algum recipiente e jogado ao rio ou ao mar. Em seguida é salvo por alguma família humilde que o mantém afastado de sua origem até chegar à adolescência, onde a criança (dando mostras de sua condição e natureza superiores), descobre a sua verdadeira origem. Então, a partir disso, inicia a jornada de reencotro com a sua pátria, reino, onde, após tarefas dignas de um ser sobre-humano, mata o pai ou um tirano mau, encontra-se com sua princesa e conquista o reinado. No entanto, após tantas lutas, o seu fim é trágico, na medida em que o reconhecimento de sua glória se dá após sua morte. O mito do herói, cujo exemplo típico é o drama de Édipo, seria uma projeção da novela familiar, onde o "ego" do filho, para atingir a autonomia, fantasia e elabora no seu interior a "morte" do pai. O herói aparece também como produto da união de um deus ou deusa com um ser humano, simbolizando a união das forças celestes e terrestres. Neste sentido, o homem encontraria seu espelho, na medida de sua origem divina (espírito) e sua origem humana (matéria), sendo que sua tarefa consistiria em unir o céu e a terra, atingindo assim a sua totalidade. Assim, a individuação é o "chamado heróico". Esta é a concepção psicodinâmica mais aceita em termos do desenvolvimento a partir do mito do herói, e está fundamentada em Otto Rank, bem como nos escritos de Carl G. Jung.
É essencialmente um arquétipo, que "nasceu" para suprimir muitas de nossas deficiências psíquicas e obedece ao mesmo perfíl e modelo nas mais diferentes culturas. É o precursor (arquétipo) da humanidade em geral. Representa, portanto, uma figura da psique coletiva, sendo sua trajetória seguida pela humanidade (de tal forma que os estágios do mito heróico façam parte do desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo); no entanto, cada qual irá vivenciar de forma única, pessoal., com seus limites e vicissitudes. O herói é um ser transitório, uma personalidade mana que nos fascina, porque personifica o desejo e a figura ideal do ser humano. Ele defende a nossa causa e por isso identificamo-nos com ele. A luta heróica possibilita a superação dos medos, compensação das mágoas, humilhações e a expressão da raiva. É a transcendência dos impulsos em busca da totalidade ou "significado". Representa, de acordo com Lutz Müller, "o modelo do homem criativo, que tem coragem para ser fiel a si mesmo, aos seus desejos, fantasias e às suas próprias concepções de valor". Ele atreve-se a viver a vida, em vez de fugir dela. Supera o profundo medo diante do estranho, do desconhecido e do novo. Trilha caminhos que, por um lado, tememos, mas que, por outro, percorreríamos prazerosamente em segredo: caminhos em esferas ocultas e proibidas do ser, de difícil acesso, ou seja, países estrangeiros ou galáxias distantes, fenômenos naturais incompreensíveis ou, ainda, a escuridão da nossa alma. À medida em que ele não se deixa desviar do seu propósito pelas advertências de outros homens, (nem pelos seus próprios medos e sentimentos de culpa), mantendo-se aberto e disposto a aprender, capaz de suportar conflitos, frustrações, solidão e rejeição, ele adquire novos conhecimentos e realiza ações que possuem uma força transformadora, não apenas em relação a ele, mas também em relação à sociedade. Ele representa características fundamentais de que precisamos para o domínio da vida e o embate criativo com a nossa existência. Seu caminho é o caminho da auto-realização, mesmo que a um "custo" extraordinário (quem sabe tal e qual ocorre conosco?). Talvez o herói recém-nascido pudesse significar o sol vigoroso surgindo da água, ao qual as nuvens se opõem timidamente em seu nascimento e que acaba por superar todos os obstáculos de maneira vitoriosa. Seu casamento final com a grande deusa poderia ser a imagem das diferentes fases da lua ou da alternância do sol e da lua, dia e noite, claridade e escuridão - uma forma de representar os opostos. Ao mesmo tempo, o arquétipo do herói encerra o risco da regressão, na medida em que sustenta no seu interior a luta dos contrários; sua tarefa primordial é equilibrar e resistir conscientemente à tensão dos opostos. Só assim os símbolos podem surgir e executar sua função transcendente (a transformação da energia). Do ponto de vista terapêutico, segundo Jung, existe o perigo da identificação com a imagem do herói, desconsiderando que o valor da imagem está no seu funcionamento intrapsíquico. O perigo da identificação com a imagem é que talvez leve vários autores a associarem à vida do herói seu fim trágico. Se considerarmos que o herói representa a possibilidade de uma jornada, a morte poderia estar associada à alteração de um período para o nascimento novo (uma mudança de atitude perante a vida, por exemplo). Neste aspecto, a jornada psicoterápica tão bem ilustra e reitera a sabedoria Apolínea: não há cura sem transformação. |